Em ‘A Débil’, o narrador parece ter já sucumbido completamente à influência corruptora da cidade. Quando ‘ela’ surge, está sentado num ‘café devasso’, bebendo absinto, como qualquer decadentista bem integrado na vida da cidade. Mas a visão da inocente ‘débil’ faz com que reconheça a cedência moral à moderna ‘Babel’ em que tinha caído. A mera presença dela recorda-lhe até que ponto se esquecera de si mesmo; ela é como um mensageiro do ‘outro mundo’ de valores opostos aos valores corruptos da cidade. […]
Ele é feio; ela é bela; ele é sólido; ela é frágil. Ele é leal; ela é assustada. A surpreendente justaposição de ‘leal’ com ‘assustada’ obriga a que a palavra ‘sólido’ seja entendida simultaneamente no seu sentido literal e figurativo. E é a ‘solidez’ moral do narrador (apesar da sua pose satanista) que permite que ele sinta ‘lealdade’ pela frágil beleza da ‘débil’. Essa beleza representa uma condição oposta àquilo que a sua possuidora naturalmente teme e que é explicitamente relacionado com a sua presença na cidade (‘fraca e loura, / Nesta Babel…), de cujo efeito corruptor (‘… Babel tão velha e corruptora…’) – a antítese da existência honesta, de cristal’ que ela faz desejar – o narrador tem o impulso de defendê-la com o seu braço protector.
Helder Macedo, in Nós: Uma Leitura de Cesário Verde.
Lisboa, Plátano Editora, 1975
- "Num bairro moderno"
Em ‘Num Bairro Moderno’ até o título nos convida logo a uma adesão a determinada realidade concreta. «Ruas macadamizadas», «casas apalaçadas», forradas interiormente de «papéis pintados». A mancha de uma Lisboa burguesa a impor-se aos velhos quarteirões – aos pombalinos, aos das ruelas estreitas e escuras. Perante ela, como reage a consciência poética de Cesário? Reacção inesperada, que é, bem mais do que um puro efeito literário, um mero exercício de retórica: o bairro passa a segundo plano, destaca-se dele a vendedeira. […]
E do retalho de horta, como que por artes mágicas, o campo instala-se em plena cidade. Melancias, repolhos, azeitonas, nabos, cachos de uvas, melões, ginjas, tomates, cenouras, alfaces, hortelã dir-se-ia que se humanizam na visão transfiguradora do poeta.
Joel Serrão, in Interpretação, Poesias Dispersas e Cartas Coligidas e Anotadas. Lisboa, Editorial Minerva, 1942
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A visão plástica é a qualidade predominante na organização lírica de Cesário, que, no seu especial poder de associar imagens visuais, consegue arrancar poesia do que há de mais trivial e menos poético […]
Miranda de Andrade, Sobre o Lirismo de Cesário Verde,
in Ocidente, Maio, 1955
Poeta da cidade, um dos maiores em qualquer tempo e em qualquer língua, por isso mesmo que genuíno, original, profundamente renovador, quer ao descrever os quadros e os tipos citadinos, quer ao denunciar, em sóbrias palavras, as atitudes subjectivas provocadas pela vida exterior.
Jacinto do Prado Coelho, Problemática da História Literária, Lisboa, 1962
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