segunda-feira, 30 de janeiro de 2012


18ª. semana ~ de 30 de janeiro a 3 de fevereiro





Retrato de Simonetta Vespucci, Piero di Cosimo (1462-1521)



Nascimento de Vénus, Sandro Botticelli (1445-1510)




Portrait d'une Negresse, Marie Benoist (1769-1826)




  • Camões - A Mulher.



Endechas a Bárbara escrava



Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

Luís de Camões, Rimas












segunda-feira, 23 de janeiro de 2012


17ª. semana ~ de 23 a 27 de janeiro






  • Camões - sonetos.
  • "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades".






Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.


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  • Do programa "Um Poema por Semana", uma ideia de Paula Moura Pinheiro - RTP:

  • Rui Reininho




  • Ana Deus




  • Isabel Salim




  • Marc Figueiredo




  • na publicidade:





segunda-feira, 16 de janeiro de 2012


16ª. semana ~ de 16 a 20 de janeiro








CAMÕES - "Os Grandes Portugueses" - RTP1






















Cantiga


a três Damas que lhe diziam

que o amavam


MOTE*:


Não sei se me engana Helena

Se Maria, se Joana,

Não sei qual delas me engana.


Voltas


Uma diz que me quer bem,

Outra jura que mo quer;

Mas em jura de mulher

Quem crerá, se elas não crêm?

Não posso crer a Helena,

A Maria, nem Joana,

Mas não sei qual mais me engana.


Uma faz-me juramentos

Que só meu amor estima;

A outra diz que se fina;

Joana, que bebe os ventos.

Se cuido que mente Helena,

Também mentirá Joana;

Mas quem mente, não me engana.

*MOTE ou MOTO


* CANTIGA






segunda-feira, 9 de janeiro de 2012


15ª. semana ~ de 9 a 13 de janeiro









  • CAMÕES é «a aleluia da língua portuguesa» (Carlos de Oliveira)


Amor é fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;
 
É um não querer mais que bem querer;
é solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder;
 
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata lealdade.
 
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?


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0 Amor é, de facto, o principal tema de toda a lírica camoniana – como é n'Os Lusíadas, uma das grandes linhas que movem, organizam e dão sentido ao universo, elevando os heróis à suprema dignidade de, através dele, atingirem a divinização.
Na Lírica de Camões, o amor é, contudo, fonte de contradições vivamente sentidas: ele é sucessivamente “fogo que arde sem se ver”; “ferida que dói e não se sente”, “contentamento descontente” – daí que dificilmente ele possa trazer consigo a alegria e a paz. É algo de indefinível ou, nas próprias palavras do Poeta, “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê.”
O amor aparece nestes poemas sob uma dupla abordagem. Uma é a sua abordagem à maneira petrarquista, de raiz provençal e neoplatónica. Trata-se de um amor espiritualizado, em que não se vislumbra o corpo dos amantes, que se compraz na adoração e contemplação do ser amado e que leva a que o amador se “transforme” na “cousa amada”. Num amor assim vivido, a ausência da amada não só não é sentida com dor, mas é encarada como ocasião de purificação do sentimento amoroso. A mulher amada, encarada como reflexo da beleza divina, é a ponte para a perfeição do “amador”. Assim, ela não é retratada com traços fisionómicos precisos – a sua beleza, que é grande, reside sobretudo no olhar, “brando e piedoso”, na postura “humilde”, na bondade; o seu retrato é um retrato psicológico da perfeição e pureza que dela emanam. Regista-se a impressão que a sua beleza causa, e não os traços de que essa beleza é feita. Trata-se de um ser sublime, divinizado, que se movimenta numa natureza alegre, colorida, paradisíaca. (...)
Mas o amor aparece também visto sob outro aspecto, numa outra abordagem. Camões, senhor de uma “longa experiência” de vida, apercebe-se da enorme distância que vai do pensamento à realidade vivida – e sente, mais violentamente que Petrarca, que a vivência quotidiana do amor, longe de trazer tranquilidade e paz, se for dela excluído o factor erótico, traz inquietação e perturbação. (...)
Da tensão (...) entre o amor espiritual e o amor sensual, resultam, para quem ama, conflitos interiores, perplexidade, contradições, angústia. O sentimento amoroso torna-se motivo de perturbação; a mulher amada transforma-se em “fera”, em “Circe”, que enfeitiça, destilando no amador o "mágico veneno" e transformando-lhe o pensamento – a ausência e a morte da amada passam a constituir ocasião de dúvida, ciúme, angústia, “mágoa sem remédio”.
Amélia Pinto Pais, Eu cantarei de amor - Lírica de Luís de Camões, Areal Editores


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Erros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
este meu duro Génio de vinganças!

*** Amália canta "Erros meus"
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De camões, em pura verdade, muito pouco sabemos

    De Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu mais pobre ainda (se não miseravelmente), ele, que acumulou bens que milhares e milhares de homens não têm chegado para delapidar. E será difícil exaurir tão fabulosa fortuna. Porque – quem o duvida? – foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação  de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo da melancolia. Daí ser raro o verso português digno de tal nome que as águas camonianas não tenham molhado de luz, desde as mais ásperas das suas consoantes às suas vogais mais brandas.
   Fora do nosso coração, não sabemos onde Camões nasceu; nem o ano ou o dia em que saiu da "materna sepultura" para o primeiro amanhecer. Como não sabemos onde estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia. Nem isso importa. Nalgumas linhas da sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que indubitavelmente são dele, pode ler-se que, como português, encarnou até à medula toda a nossa condição: pobreza, vagabundagem, cadeia, desterro.
"Erros", "má  fortuna" e "amor ardente" se conjuraram para fazer daquele alto espírito do  maneirismo europeu uma das figuras mais desgraçadas da via sacra nacional. Por "erros", talvez se possa entender um cristianíssimo arrependimento daquele marialvismo da sua juventude; a "má fortuna" não pode ter sido senão a de ter vivido num  tempo em que Portugal, além de ser "uma casa sem luz em matéria de ilustração", se preparava fatidicamente  para abandonar todas as suas guitarras nos campos de Alcácer Quibir; quanto ao "amor ardente" – não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre o límpido apelo dos sentidos e toda uma  platonizante teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho?
 Não sabemos também quem o poeta tenha amado, para lá das anónimas "ninfas de água  doce" do Mal Cozinhado e outros bordéis de Lisboa. Mas que tais "ninfas" tiveram na  sua vida importância, ninguém pode duvidar. As cartas de Camões, e como fonte da sua vida privada nada temos mais seguro, além de nos darem notícia do seu espírito arruaceiro, quase não falam noutra coisa. Que a sua poesia só muito raramente tem a ver com os "pagodes" de Alfama é óbvio, mas dali deve ter partido algumas vezes para, depois de metamorfoses várias, voar muito alto, como sempre aconteceu, particularmente em herdeiros da cortesia  e do "dolce still  nuovo". Porque a verdade é que nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos, para tanto se desprender deles, como a de Camões.

Eugénio de Andrade 


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como a pintura é a poesia; coisas há que de perto
mais te agradam e outras, se à distância estiveres

Horácio, Arte Poética


  • ANAMORFOSE:








domingo, 1 de janeiro de 2012


2012









Receita de ano novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade