
- Dizem 'o meu poema':
- 2.ª feira, dia 30 de Maio - Daniela Campos, Luís Silva, Marta Ribeiro, Sara Lucas, Sebastião Castro, Tatiana Carvalho
"Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem/ou para beber a água de um espelho/ ou para se embriagar como um pássaro ingénuo" António Ramos Rosa
Em ‘A Débil’, o narrador parece ter já sucumbido completamente à influência corruptora da cidade. Quando ‘ela’ surge, está sentado num ‘café devasso’, bebendo absinto, como qualquer decadentista bem integrado na vida da cidade. Mas a visão da inocente ‘débil’ faz com que reconheça a cedência moral à moderna ‘Babel’ em que tinha caído. A mera presença dela recorda-lhe até que ponto se esquecera de si mesmo; ela é como um mensageiro do ‘outro mundo’ de valores opostos aos valores corruptos da cidade. […]
Ele é feio; ela é bela; ele é sólido; ela é frágil. Ele é leal; ela é assustada. A surpreendente justaposição de ‘leal’ com ‘assustada’ obriga a que a palavra ‘sólido’ seja entendida simultaneamente no seu sentido literal e figurativo. E é a ‘solidez’ moral do narrador (apesar da sua pose satanista) que permite que ele sinta ‘lealdade’ pela frágil beleza da ‘débil’. Essa beleza representa uma condição oposta àquilo que a sua possuidora naturalmente teme e que é explicitamente relacionado com a sua presença na cidade (‘fraca e loura, / Nesta Babel…), de cujo efeito corruptor (‘… Babel tão velha e corruptora…’) – a antítese da existência honesta, de cristal’ que ela faz desejar – o narrador tem o impulso de defendê-la com o seu braço protector.
Helder Macedo, in Nós: Uma Leitura de Cesário Verde.
Lisboa, Plátano Editora, 1975
Em ‘Num Bairro Moderno’ até o título nos convida logo a uma adesão a determinada realidade concreta. «Ruas macadamizadas», «casas apalaçadas», forradas interiormente de «papéis pintados». A mancha de uma Lisboa burguesa a impor-se aos velhos quarteirões – aos pombalinos, aos das ruelas estreitas e escuras. Perante ela, como reage a consciência poética de Cesário? Reacção inesperada, que é, bem mais do que um puro efeito literário, um mero exercício de retórica: o bairro passa a segundo plano, destaca-se dele a vendedeira. […]
E do retalho de horta, como que por artes mágicas, o campo instala-se em plena cidade. Melancias, repolhos, azeitonas, nabos, cachos de uvas, melões, ginjas, tomates, cenouras, alfaces, hortelã dir-se-ia que se humanizam na visão transfiguradora do poeta.
Joel Serrão, in Interpretação, Poesias Dispersas e Cartas Coligidas e Anotadas. Lisboa, Editorial Minerva, 1942
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A visão plástica é a qualidade predominante na organização lírica de Cesário, que, no seu especial poder de associar imagens visuais, consegue arrancar poesia do que há de mais trivial e menos poético […]
Miranda de Andrade, Sobre o Lirismo de Cesário Verde,
in Ocidente, Maio, 1955
Poeta da cidade, um dos maiores em qualquer tempo e em qualquer língua, por isso mesmo que genuíno, original, profundamente renovador, quer ao descrever os quadros e os tipos citadinos, quer ao denunciar, em sóbrias palavras, as atitudes subjectivas provocadas pela vida exterior.
Jacinto do Prado Coelho, Problemática da História Literária, Lisboa, 1962
A analogia entre o poema e uma aguarela é totalmente justificada. “De Tarde” é um quadro impressionista transposto em palavras – um “Déjeuner sur l’herbe” – que especificamente se dirige à imaginação visual do leitor: no primeiro plano, o vermelho intenso das papoulas que emergem de um decolleté rendilhado contrasta, em cor e textura, com as “duas rolas” brancas dos seios de uma rapariga que sobressai de entre os pequenos grupos que merendam, sentados em volta de dourados melões, damascos, um bolo, uma garrafa de vinho doce:
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
No fundo, os “burricos” pardos, o azul surpreendente de um campo, e o sol vermelho do fim da tarde.
Os pormenores da composição podem variar na imaginação individual de cada leitor, mas o seu ponto dominante tem inevitavelmente de ser o “ramalhete rubro das papoulas”:
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Helder Macedo, in Nós: Uma Leitura de Cesário Verde, Lisboa, Plátano Editora, 1975
[…] uma merenda ao pôr do sol com “…talhadas de melão, damascos / E pão-de-ló molhado em malvasia”. Pouco antes da merenda uma rapariga, que imaginamos loira, pois era de loiras que Cesário gostava, descendo do inevitável “burrico” – dizemos inevitável por os jumentos constituírem nessa época um atributo tão essencial nos pic-nics como no século XVIII os carneiros nas festas campestres – vai colher
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
E, com ele entalado nas rendas do seio, acampa depois “em cima duns penhascos” onde há doces, frutas e garrafas de vinho fino… É tudo. Mas este pouco basta. A fugitiva impressão, o quadrinho apenas esquissado, com as suas flores campestres, a sua paleta azul e vermelha, a sua sugestão de seios femininos dão-nos, na verdade, uma sensação de sensualidade repousada e feliz. Estamos, não há dúvida, perante um Renoir – e dos autênticos.
João Pinto Figueiredo, in Cesário Verde – A obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, 1981