
- "Diante do espelho", texto de José Saramago (pág. 143).
- Imagens - leitura, compreensão.
- Reflexão: o provérbio judaico (pág. 145).
- Teste sumativo - estrutura. Que dúvidas?
"Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem/ou para beber a água de um espelho/ ou para se embriagar como um pássaro ingénuo" António Ramos Rosa
— Tenho ciúmes de tudo aquilo cuja beleza não morre. Tenho ciúmes do retrato que você pintou de mim. Porque há-de ele conservar o que eu tenho de perder? Cada momento que passa rouba-me a mim qualquer coisa e acrescenta-lhe qualquer coisa a ele. Quem me dera que fosse de outra maneira! Que o retrato mudasse e eu permanecesse sempre o mesmo que sou! Porque o pintou? Há-de escarnecer de mim, há-de escarnecer de mim, há-de escarnecer de mim horrivelmente!
Irromperam-lhe dos olhos lágrimas ardentes; retirou violentamente a mão das do pintor e atirou-se para o divã, em cujas almofadas escondeu a cabeça, como se rezasse.
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray
Tradução de Artur Parreira
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
A SENHORA DO RETRATO
Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.
Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. […]
Manuel Alegre, in O Homem do País Azul
PEÇAS DE MUSEU
Acabo de sofrer uma das maiores humilhações da minha vida. Ainda por cima aqui no meu bairro, as pessoas a olharem para mim com aquele sorriso de meia boca, género «coitadinha, não liguem».
Ia eu, muito pacificamente pela rua acima, deitar umas cartas no marco do correio, quando oiço estalar uma gargalhada a acompanhar o vozeirão do meu amigo Fernando que ali, em altos berros, para toda a gente ouvir, me reduzia à insignificância de ainda precisar de usar um objecto tão obsoleto e anacrónico (a expressão, obviamente, é dele). Olhei em roda à procura do tal objecto, que eu não descobria em parte nenhuma, mas ele não parava de falar e de rir, que há não sei quanto tempo não via uma pessoa servir-se daquilo, que se tivesse ali uma máquina fotográfica até registava o momento, se eu não sabia que havia uma coisa chamada computador e outra coisa chamada e-mail, e ria, e ria, e as pessoas passavam, olhavam, e riam com ele, e eu ali, finalmente a perceber que era do pobre marco do correio que ele falava.
Lembrei-me, então, de outra vez em que uma coisa semelhante se tinha passado comigo, embora não tão ostensivamente humilhante, coisa bem mais pacata e silenciosa. Estava eu nessa altura de férias no Luso, a tentar escrever alguma coisa à mesa do café. Faltou-me a tinta e rapo de um tinteiro pequeno que tinha acabado de comprar e, logo ali, encho a caneta. É então que uma das empregadas se especa à minha frente, mãos espalmadas na barriga, e murmura: «Jasus! Desde o tempo da minha escola primária que eu não via uma pessoa fazer isso!»
Pois é. Eu escrevo cartas. À mão. Com caneta. Com tinta. E – o que ainda torna tudo muito pior – gosto muito. E tenho muita pena que esse prazer se esteja a perder. Às vezes penso que o progresso e os avanços (tecnológicos e não só) estão a fazer desaparecer alguns dos grandes prazeres da nossa vida. Para já, a enorme loucura da pressa com que sempre andamos fez-nos perder o prazer de ter tempo para perder tempo.
Come-se em pé no balcão da esquina, e a correr, porque atrás de nós estão mais dois ou três à espera do lugar.
E o pão que comemos não sabe a pão, feito à pressão naquelas casas que substituíram as honradas padarias e se chamam «boutiques do pão».
E a maçã que comemos não sabe a maçã, feita em estufas, toda do mesmo tamanho e com aquele aspecto que até parece que saiu da história da Branca de Neve, e onde nenhum bicho entra, porque o bicho é esperto e nós não.
E depois há o telemóvel para resolvermos negócios enquanto estamos a atravessar o passeio, para não perdermos alguns minutos, e quando nos enfiamos no comboio nem sequer olhamos para a paisagem porque ligamos imediatamente o nosso PC portátil, e fazemos da carruagem a extensão do nosso escritório, perdendo todo o prazer da viagem.
E escrever cartas. O prazer de tocar no papel, de sentir o aparo deslizar, de saborear as palavras que se vão alinhando, o prazer de escrever cartas de amor ridículas, cartas de adeus desesperadas, cartas banais da pequena intriga familiar, cartas enormes como as que escrevíamos na nossa adolescência, quando os amigos nos faziam tanta falta e os dias eram desmesuradamente grandes.
E olho para as prateleiras da estante, com aqueles volumes de correspondência de escritores, que sabe tão bem ler, e penso que tudo isso vai acabar também, e as cartas, e os selos, e os bilhetes postais, e os marcos-de-correio-de-portinha-ao-centro, e as canetas e os tinteiros vão transformar-se muito rapidamente em peças de museu para mostrarmos aos netos dizendo «a avó ainda usou isto» e eles a olharem para nós e a não acreditar.
Alice Vieira, Pezinhos de Coentradas